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Também morre quem atira, comprova Luan 1z6i63

Luan nasceu em 23 de novembro de 1991, e viveu 31 anos. Morreu em Campo Grande, no dia 1º de janeiro deste ano, a tiros, durante confronto com policiais. 2p266j

O lapso temporal entre 18 de março de 2018 e 1º de janeiro de 2023 tem 1750 dias. Significa pouco mais de quatro anos. Parece não ser muito. Mas é tempo suficiente para realizações, notadamente quando se é jovem: aprender uma profissão, outra língua, viajar, concluir a faculdade, ar em um concurso público… Ou dar fim a tudo, caso seja alguém submerso no ciclo da violência que encurta a existência de muitos brasileiros em idade altamente produtiva.

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Policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar próximo do local onde terminou a perseguição a Luan. (Foto: Divulgação)

“Também morre quem atira” não se resume ao refrão da canção popular composta por Marcelo Yuka e Ivo Meirelles, sucesso do segundo álbum da banda O Rappa, na década de 1990. Essas palavras tão repetidas são a síntese da trajetória de Luan Veríssimo Valadares, campo-grandense com histórico digno das bordas marginalizadas de qualquer metrópole pelo mundo.

Gente que um dia atira, em outro morre.

Luan nasceu em 23 de novembro de 1991, e viveu 31 anos. Morreu em Campo Grande, no dia 1º de janeiro deste ano, a tiros, durante confronto com policiais. Deixou para trás mais de 15 anos de desencontros com a lei. Antes da maioridade, já respondia por roubo e por assassinato.

Convivia com episódios violentos desde muito cedo. Relatava ser ajudante de eletricista, quando era capturado, e dizia não ter concluído nem o ensino fundamental.

A cena derradeira descrita pela polícia transporta para um matagal, no Parque Lageado, bairro surgido de programa de desfavelamento, onde a pobreza, a violência e a desassistência são rotina. Primeiro de carro, depois a pé, enfiado pelo meio da vegetação, o procurado dispara a arma contra a equipe policial em ronda.

Recebe o contragolpe. Cai sem vida. Pense na imagem. Se fosse para trilhar, “Hey, Joe” caberia sem tirar nem por.

“…Hey, Joe onde que você vai com essa arma aí na mão
 Hey, Joe, esse não é o atalho para sair dessa condição…”

canção do álbum rappa mundi, de 1996.

Pois “também morre quem atira” já havia sido cantada como apelo por, e para Luan. Foi no plenário do tribunal do júri, em 18 de março de 2018, quando ele foi condenado a 12 anos de prisão por assassinato e porte ilegal de arma.

A poesia da música foi a estratégia do defensor público responsável por tentar convencer o time de sete jurados a dar alguma chance ao acusado.

Confira o vídeo:

Era uma defesa bem complexa.

Luan era reincidente, fichado desde a adolescência e tinha registro de fuga. Na acusação em apreciação, contam os autos, atacou a vítima na saída do presídio da Gameleira, em Campo Grande, por vingança.

Aos 25 anos, Nuno Mayerson Leal Pereira Toledo saía para licença de sete dias, no dia 28 de novembro de 2014. Houve tocaia, desde as 4h, à espera da partida do ônibus no qual os internos eram levados até o terminal rodoviário.

O assassino entrou no veículo, com a cabeça coberta pelo capuz do casaco, para esperar o alvo. Como ele não entrava, desceu e foi atrás.

Quando a vítima assinava o papel de liberação, foi alvejada com tiros de pistola 9 mm. O cadáver ficou ali, na entrada da detenção. O olho direito saltou para fora. Pelo corpo, em torno de dez marcas de entrada e saída de projetis.

Ao apresentar seu argumento em favor do representado ao júri, o defensor Rodrigo Givanildo Stochiero pegou o violão, desculpou-se por ser melhor defensor do que intérprete, e cantou um trecho de “Hey, Joe”.

Para ele, a música da banda surgida na favela no Rio de Janeiro traça caminho parecido ao de Luan e servia para refletir na hora de decisão sobre o futuro do jovem negro no banco dos réus, tarefa difícil nas mãos dos jurados.

“Ao cantar para os jurados, tentei explicar a soma de fatores que impulsionaram o réu a agir da forma antijurídica. Veja bem, não procurei justificar a sua conduta, mas apresentei lentes diversas que poderiam alterar a compreensão do fenômeno, inclusive para o reconhecimento jurídico do chamado “privilégio”, o que efetivamente foi alcançado”, escreveu o defensor em publicação recente, quando soube da morte do ex-assistido.

O privilégio citado pelo operador do Direito é uma tese usada pelas defesas para que os jurados reconheçam o cometimento do crime sob violenta emoção. Por vezes, funciona até para absolvição.

Guerra de gangues de bairros vizinhos 664f4k

Se discutia naquele júri mais um crime no roteiro da rixa de duas famílias, provocada por guerra de gangues em bairros vizinhos, o Parque do Lageado e o Dom Antônio Barbosa, separados por uma rua. Nuno cumpria pena pela morte do irmão de Luan, Lenon Veríssimo Valadares, aos 17 anos, ocorrida em agosto de 2007, em uma movimentada boate na avenida Panambiverá.

O próprio Luan, então com 15 anos, foi ferido a tiros, dentro de casa.

Meses antes, em março, outro Veríssimo Valadares, Laerte, conhecido como “Saci”, foi vítima da rivalidade. Tinha 19 anos. Um terceiro irmão, Luciano, faleceu aos 16, no mesmo contexto, segundo as conversas no bairro.

Nuno teria agido com toda essa violência para vingar a morte de um irmão, perpetrada por “Saci”.  

Vizinhos de bairro, semelhantes em suas histórias de vida, foram cumprir pena no mesmo lugar. As confusões e ameaças eram frequentes, conforme testemunhas.

Chegada a hora da decisão, o conselho de sentença condenou Luan pelo assassinato de Nuno. A fala do defensor, com direito a música, surtiu efeito em certo aspecto. Na sentença, arbitrada pelo juiz, a pena foi reduzida.

“Pelo privilégio do relevante valor moral, reduzo a pena em 1/3 (um terço), levando em consideração as informações de que a vítima teria matado dois de seus irmãos, o que justifica a redução na pena no máximo privilégio do relevante valor moral”, escreveu Aluizio Pereira dos Santos, titular da 2ª Vara do Tribunal do Júri.

Para Luan, porém, o recado parece não ter feito qualquer diferença. A vida errática continuou. No meio do ano ado, ele conseguiu a progressão de regime para o semiaberto. O comportamento até era considerado bom na cadeia, assegurando o benefício. Depois, conseguiu autorização para a chamada saidinha. Nunca mais voltou.

A Capivara Criminal levantou indícios de tentativa de convencimento para se entregar por parte de pessoas próximas de Luan. Nada feito.

Além das dívidas a pagar do ado, Luan Veríssimo Valadares estava fugindo por empreitadas criminosas recentes. Nos dias 25 de dezembro, Natal, e 28 de dezembro, poucos antes da chegada do novo ano, cometeu duas tentativas de feminicídio.

Na primeira data, atirou contra a ex-mulher, de 33 anos. Três dias depois, tentou contra vida da mãe dela, a sogra, de 56. Na casa da mãe da ex-companheira do atirador, quatro cápsulas deflagradas foram recolhidas.

Essa investigação ainda corre na Deam (Delegacia de Atendimento à Mulher), localizada na Casa da Mulher Brasileira). Segundo a informação obtida pela Capivara Criminal, faltam laudos para conclusão da peça.

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Luan na ficha policial. (Foto: Reprodução de processo)

Esse fato traz mais uma associação do destino de Luan com “Hey, Joe”, agora na versão original, famosa com Jimi Hendrix.

Composta em 1962 por Billy Roberts, a música ilustra outra era, tempo em que a violência de gênero sequer era tema de debate. O Joe da versão em inglês está fugindo, tem uma arma na mão, porém a razão é diferente do cara da versão brasileira. O dos Estados Unidos atirou na esposa e buscava chegar ao México.

Luan e o Joe da primeira criação de “Hey, Joe” terminam a carreira de ilegalidades como feminicidas.

Cabe lembrar que em relação à morte de Luan, existe apuração sendo tocada, pela própria Polícia Militar, como é praxe em homicídio decorrente de oposição à intervenção policial.

Abaixo, confirma conversa da Capivara Criminal com o defensor que cantou “Hey, Joe” no plenário:

Quantos júris o senhor já fez? z94f

Eu costumava registrar o número de júris, mas a partir do júri número 200 eu parei de contar. Acredito que atualmente tenha ultraado 250 júris.

Tem uma noção de quantos dos atendidos tiveram destino como o Luan, que acabou sucumbindo ao ciclo da violência? 6v4x5r

Eu não consigo acompanhar a vida dos acusados pós-júri. Mas às vezes me deparo com notícias sobre a morte de alguma pessoa egressa do sistema prisional e infelizmente a lembrança do nome confirma que aquela pessoa já teria sido defendida por mim no júri. Foram aproximadamente 5 pessoas com esse mesmo enredo.

Qual é o sentimento de um operador do direito voltado ao exercício da defesa quando vê esse ciclo da violência se repetir? 5e65j

O sistema de justiça criminal é o último reflexo de uma série de problemas (culturais, econômicos, políticos) que alimentam o ciclo da violência. O primeiro sentimento é, portanto, de impotência por chegarmos atrasado. Mas também é de esperança de que aquele que é atendido poderá de algum modo perceber que é possível um ponto de virada na vida, que alguém ouviu os seus anseios e dores, que a redenção, ainda que mínima, é possível. E, por fim, há o sentimento de gratidão por conhecer tantas histórias tristes e perceber o quão insignificantes são os problemas que eu tenho.

Na sua avaliação, por onde o Brasil e Mato Grosso do Sul precisam caminhar para combater essa realidade? 4k4v1l

O principal problema é a gritante desigualdade social e ausência de oportunidades para uma significativa parcela da população. Pode parecer clichê, mas é preciso investir mais em educação e, por último, numa mudança de mentalidade. Violência não se combate com violência, mas com acolhimento, escuta, responsabilização (sim, e preciso punir, mas não nos moldes atuais) e redenção.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Capivara Criminal, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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